"Voltara a encher o copo de vinho pela segunda vez. Aquele travo meio amargo, mas com uma textura aveludada que lhe invadia, agora, as papilas gustativas deixavam-na mais relaxada.
Aprendera a gostar de vinho não há muito tempo. Sempre achara que o vinho era uma coisa de velhos - que ao meio dia já estavam a pedir um copo de três numa tasca que ainda guardava o ruído dos penaltis que tinham ficado por marcar na noite anterior. Talvez fosse por isso que, àqueles homens, só lhes restasse os outros penaltis. Os do vinho.
Não tinha por hábito beber sozinha. Mas, hoje, tinha de o fazer. Precisou de o fazer. Chegara do trabalho por volta das cinco da tarde - quando a tarde já é noite há muito tempo - e precisou de se sentir acompanhada. Precisou da sua companhia. Passamos os dias a espoliarmo-nos de nós.
Passamos os dias a responder e corresponder a tudo o que esperam que sejamos lá fora. Na vida. No mundo real. Passamos os dias a tentar não nos iludir para não nos desiludirmos. Mas depois, depois é preciso voltar. É preciso despir o casaco, é preciso despirmo-nos a nós. Por dentro. É preciso esvaziarmo-nos do mundo - que continuará lá fora, no dia seguinte, - para podermos ficar nós.
E fora isso que ela fizera, nesta sexta feira, ao final da tarde, quando meteu as chaves à porta. Entrou, inspirou fundo o ar frio de dezembro e livrou-se dos saltos daquelas botas. Não se preocupou que pudessem ter ficado espalhadas no meio do corredor. Amanhã, tinha tempo para isso. Agora não.
Dirigiu-se à cozinha - em passos lentos e descontraídos - e esbarrou-se com a garrafeira que estava mais cheia que vazia. Agachou-se e, sem dúvidas, escolheu um Douro reserva de dois mil e treze. Não era uma expert em vinhas e castas, mas fora aprendendo a fixar aquilo que apreciava. E dois mil e treze tinha sido um bom ano de vinhos.
Escolhera um copo de boca larga. Sempre gostara de copos grandes. Dos que se sentem que estamos, de facto, a agarrar qualquer coisa.
Derrubou o vinho no copo - que reproduzia uma espécie de melodia ao bater no vidro - e dirigiu-se para a sala. Não se prendera a nenhum programa sem interesse que estivesse a passar na televisão. Não se prendera porque nem sequer a ligou. Precisava de silêncio. Ou talvez precisasse, acima de tudo, de ouvir o ruído que fazia dentro de si. Deixou-se cair no sofá e ficou na esperança que o mundo serenasse com ela.
Ainda tinha algumas horas. Ainda lhe sobravam algumas horas antes de ir para mais um encontro.
Bebericara mais um golo daquele líquido aveludado com a convicção de que ele trazia a certeza de que, desta vez, iria dar certo.
Por agora, sentada no sofá a olhar para uma televisão desligada, só queria saborear aquele copo de vinho como quem dá por terminada mais uma semana de trabalho. Só precisava de uns minutos de silêncio para se ouvir a si própria. Só precisava de si, antes de ir ter com ele.
Tinha-o conhecido pela internet. Aliás, para ser sincera e agora que pensara nisso, essa fora a forma como conheceu as três últimas pessoas com quem se acabara por envolver fisicamente. Tivera a sua última relação há cinco anos. Desde aí que, primeiro era porque não queria envolvimentos sérios, depois era porque os envolvimentos nunca chegavam à parte de ficar sérios.
Tinha um grande defeito. E sabia-o. Identificara-o já há algum tempo e tentava, com todas as suas forças, lutar contra ele. Mas em vão. Sentia sempre demais. Quando sentia, era sempre exageradamente. No limite do sentir.
Ao fim de algumas semanas de conhecer alguém, já projectava as viagens que fariam nos fins de semana em que estivesse sol, nos restaurantes onde iriam fazer jantares tardios e nos sítios recônditos, por esse Portugal fora, onde iriam partilhar momentos a dois. Depois disso, quando se apercebia que os fins de semana continuavam a ser passados em casa, que os restaurantes continuam a ter só um prato na mesma e que os sítios recônditos continuavam apenas a guardar as histórias sem o seu nome, inevitavelmente, ficava sem rede.
Ficava perdida no meio do cenário que ela própria idealizara.
Depois, restava, novamente, todo um processo de regresso a si, de serenar a alma e de voltar a acreditar que o melhor, afinal, ainda estaria por vir. Que o melhor ainda não tinha sido desta vez. Que o melhor não podia ser aquilo porque, afinal, aquilo tinha sido apenas igual a nada.
E preparava-se para repetir tudo outra vez, nesta sexta feira. Começara a falar com ele há três semanas, e, em três semanas, achara que ele podia muito bem ser de quem ela continuava à espera durante estes anos todos. Ele poderia muito bem ser o certo no meio do errado todo da sua vida; ele poderia muito bem ser o simples no meio do complicado.
Ele poderia muito bem ser...
Interrompera o pensamento com o sinal de mensagem que vinha do seu telemóvel - que ainda estava dentro da mala junto às botas espalhadas no meio do chão.
Deu um último trago naquele vinho maravilhoso e levantou-se, num impulso, do sofá.
Apanhou a mala do chão e procurou o telefone - que parecia esconder-se, eximiamente, no meio dos outros objetos.
«O que é que queres de presente de Natal?» - Pode ler no ecrã do telefone.
Era uma mensagem escrita da sua melhor amiga. Daquelas com as quais não é preciso fazer número, vestir a capa ou sermos fortes. Daquelas que nos conhecem quase antes de nós.
Preparava-se para responder, instintivamente, que não fosse parva que, evidentemente, não queria nada. E de repente, ali, de pé no meio do corredor da entrada de sua casa, entre as botas e a mala espalhados pelo chão, parou e disse em voz alta para que ela mesma também pudesse ouvir:
-É mentira. Tenho estado a mentir este tempo todo. Tenho-te estado a mentir a ti, amiga e tenho estado a mentir-me a mim.
Optou por não responder à amiga. Depois teria tempo para falar com ela.
Saiu, rapidamente, das mensagens e procurou a aplicação do WhatsApp. A primeira conversa era a dele - engraçado, falava com ele há três semanas, ia-se encontrar com ele esta noite e nem sequer sabia o último nome dele. Abriu a conversa e escreveu:
«Sérgio, lamento, mas vamos ter de dar sem efeito o nosso encontro de hoje. Espero, sinceramente, que encontres o teu caminho, que saibas o que fazer com ele e que sejas feliz. O meu, seguramente, não passa por aqui.»
Depois disto, voltou à cozinha para pousar o copo em cima da bancada, regressou para calçar as botas - que ainda não tinham arrefecido completamente - pegou na mala e saiu.
Era dezembro. As ruas enchiam-se, cada vez mais, de luzes, de canções natalícias que ecoavam do meio das árvores iluminadas e do frio das noites que era atenuado pelo fumo que saía dos potes de castanhas assadas que se viam em cada esquina.
Já há muito que decidira não oferecer presentes de Natal. Achara que os melhores presentes eram sempre aqueles que eram dados sem datas marcadas. E era isso mesmo que ia fazer. Não por ser Natal, mas porque era o que lhe fazia sentido, nesta sexta-feira.
Decidira ir comprar um presente especial. Talvez o mais especial deles todos, nos últimos tempos.
Estacionou o carro no parque de estacionamento do shopping, puxou o elevador até ao primeiro andar e dirigiu-se em passos largos à livraria - onde era cliente frequente. Entrou e respirou cada história que imaginava estar dentro de todos os livros que forravam aquelas prateleiras. Fazia sempre isto.
Mas, desta vez, não parou em nenhuma secção em especial. seguiu em frente e dirigiu-se ao balcão. Do outro lado, esperava-a o funcionário que, prontamente, lhe perguntou:
- Posso ajudá-la?
- Acho que sim! Queria, por favor, o caderno mais bonito que tiver de folhas brancas.
Ao ouvir estas palavras proferidas com tanto entusiasmo, alguém que se encontrava também junto ao balcão, ousou perguntar-lhe:
- Desculpe perguntar, mas como é que é possível vir comprar com tanto entusiasmo um simples caderno em branco?
Olhou para aquele homem que lhe fizera aquela estranha pergunta. Tinha um brilho diferente no olhar.
O funcionário entregava-lhe, agora, um caderno de capa dura com rebordo em dourado e vermelho.
Pegara nele, alcançou uma caneta de tinta permanente que tinha na mala e escreveu, prontamente, na primeira página:
«A minha história começa aqui.»
Respondendo apenas com o seu melhor sorriso, mostrou ao curioso homem - que não devia ter mais de quarenta anos - as primeiras palavras daquele que decidira ser o livro da sua vida.
Ele, sem conseguir desviar o olhar, tirou-lhe, delicadamente, a caneta da mão e rasurando a palavra «minha» que se lia naquela primeira página, alterou a frase para:
«A nossa história começa aqui.»
Enquanto lhe devolvia o caderno, sorridente, perguntou:
- Posso escrever a primeira de muitas páginas desse livro?"
Só que não